Stefano Rodotà é um dos maiores
juristas do nosso tempo. Professor titular
de Direito Civil da Universidade “La Sapienza”, em Roma, suas obras são estudadas nas
faculdades e discutidas em programas de pós-graduação de diversos países; seus artigos,
publicados em jornais e revistas, influenciam a opinião pública européia sobre
os mais intrincados problemas da atualidade. Um dos primeiros civilistas a reconstruir,
com base nos valores constitucionais, os grandes institutos do direito civil e
a defender a regulamentação por princípios e cláusulas gerais, Rodotà é atual
(também no sentido aristotélico) há quase cinqüenta anos.
Nascido em Cosenza, na Calábria,
em 1933, graduou-se com louvor em Roma, em 1955, defendendo a monografia L’interpretazione giuridica nella coerenza
del diritto, orientada por Emilio Betti. Quando Betti passou à cátedra de direito
romano, deu-se o seu tão profícuo encontro com Rosario Nicolò, cujo mestre fora
Salvatore Pugliatti, e que na época já propugnava pela modernização da doutrina
do direito civil. Na década que se seguiu, Rodotà permaneceu como professor
assistente de “Instituições de direito privado”. Neste período aparecem os
escritos que viriam a contribuir para a redefinição dos rumos da pesquisa
civilista na Itália e nos países por ela influenciados. Aos primeiros artigos
seguiram-se os livros Il problema della
responsabilità civile; [1] Le fonti di integrazione del contratto; [2] e,
um pouco mais tarde, a organização da obra Il
diritto privato nella società moderna [3]. Alguns
anos depois, publica a famosa coletânea sobre o direito de propriedade, que
reúne vinte anos de estudos seus sobre o tema: Il terribile diritto. Studi sulla proprietà privata. [4]
Sua principal peculiaridade como
civilista consiste em ser também um homem público. Entre 1979 e 2005 foi
parlamentar italiano [5],
deputado europeu, membro do European Group on Ethics in Science and New
Technologies, presidente da Autoridade de Proteção de Dados Pessoais da
Itália (Garante per la protezione dei
dati personali) e presidente do Grupo de Autoridades de Proteção dos Dados
Pessoais europeu.
Visiting Scholar junto
à Stanford School of Law e Visiting Fellow no All Souls College, em Oxford, fundou e dirige duas das mais
importantes revistas jurídicas italianas, Politica
del diritto e Rivista critica del
diritto privato. Entre tantas outras, uma referência que muito o orgulha:
foi membro, representante designado pelo Governo italiano, da Convenção que
redigiu a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, promulgada em dezembro
de 2000. [6]
Com este histórico, não poderia
deixar de ser frequente a indagação quanto à sua aparentemente inusitada opção
pelo direito privado. [7]
Com marcada posição política de esquerda e grande disposição para a vida
pública, seus interesses o teriam levado, naturalmente, para o direito público.
No entanto, a partir de uma análise de Marx, Rodotà identificou – ainda que de
modo não completamente consciente na época – uma profunda transformação social ainda
em
desenvolvimento. Para além do sujeito de direito clássico do
Código Civil – a burguesia destinatária do Code
Napoléon –, a industrialização havia feito nascer um outro sujeito de
direitos: a classe operária. Rodotà muito cedo percebeu o impacto que isso viria
a ter no direito privado.
Havia duas alternativas: ou bem o
Código Civil (chamado de “constituição do homem privado”) seria completamente
reformulado, ou então um outro diploma deveria garantir direitos fundamentais ao
operariado. Rodotà resume: “O surgimento dos dois sujeitos não leva a
reescrever o Código Civil para incluir a classe operária, mas traz consigo o
questionamento sobre que valor jurídico deve ter este novo sujeito. Sua
colocação será constitucional. (...) Podemos então compreender que a operação
que leva do Código à Constituição não é de mera transferência, a ser estudada
apenas no plano da teoria das fontes: daquele momento em diante, propriedade,
família, contrato serão abordados também nas constituições porque os códigos
civis não podiam comportar a presença deste outro sujeito”. [8]
É de 1960 o artigo intitulado Note critiche in tema di proprietà [9],
que viria a atrair grandes atenções. em
1963, lança o livro sobre a responsabilidade civil, cujo fundamento identifica
na solidariedade constitucional, e em 1966 obtém o primeiro lugar no concurso de
titularidade, com a obra sobre o contrato. Na ata, a banca examinadora ressalta
“la personalità del tutto singolare,
a vasta e profunda cultura e o interesse pelo enquadramento dos problemas
jurídicos no mais amplo quadro das ciências sociais, que lhe permitem
abordagens originais no tratamento dos temas”. [10]
A singularidade e a originalidade
do autor decorrem certamente do fato de que sempre esteve interessado no
sujeito concreto real, e não no sujeito abstrato da dogmática. Rodotà começara
a constitucionalizar o direito privado não pelo direito do trabalho (ainda hoje
parte integrante do direito privado na Itália), como seria fácil esperar, mas através
dos principais institutos do direito civil: primeiro a propriedade, depois a
responsabilidade civil e, em seguida, o contrato. A banca concursal reconhecera
a excelência de seu trabalho, não obstante ele houvesse caminhado na direção
contrária àquela costumeiramente trilhada pela doutrina civilista, arraigada
unicamente nos conceitos jurídicos abstratos. A propósito, relembra: “Não era
só uma revolta metodológica, havia também a Constituição; e a consideração de
que nós não estudávamos o direito como era, não existiam as normas, não havia a
jurisprudência, e havia um paradoxo porque boa parte dos privatistas, dos
civilistas italianos, eram também advogados. E era paradoxal que escrevessem
livros nos quais a jurisprudência não aparecia [...] não havia correspondência
entre o direito que era utilizado pelos estudiosos para escrever suas
monografias e seus tratados e o direito que se desenvolvia, a Constituição, a
jurisprudência, a legislação especial; portanto, esta revolução metodológica
era também uma maneira de reconstruir o sistema jurídico na sua
realidade.” [11]
Após um período – “talvez tempo
demais” – dedicado quase integralmente à política, seu regresso em tempo
integral à pesquisa jurídica tinha que ter a marca da imanência. Coerentemente
com o seu percurso – a vida real, o sujeito concreto, a pessoa humana, foram os
únicos personagens de suas obras –, ele volta para se dedicar aos problemas atuais
do direito civil.
Outra vez seu olhar dirige-se
para os mais importantes institutos do direito civil, que agora são outros, e em
lugar de reconstrução o trabalho a ser realizado deve ser de construção. A
legislação, os princípios, os conceitos básicos, tudo ainda estava “por fazer” para
que fosse possível tutelar adequadamente as situações jurídicas subjetivas extrapatrimoniais,
os chamados direitos da pessoa humana, especialmente no que se refere aos
problemas decorrentes das novas tecnologias e suas repercussões no campo da
biomedicina e da informática.
Quando retornou às salas de aula,
em 1994, a
matéria de seu novo curso (“Tecnologias e direitos”, depois transformado em
livro) parecia aos colegas “uma extravagância”. Não conseguiam identificar o
conteúdo jurídico que tal material pudesse ter. Nas palavras de Rodotà: “Pareciam
ser questões marginais, pareciam questões que com o direito tinham pouco a ver,
enquanto hoje sabemos muito bem que os temas ligados à bioética e à informática
são não apenas temas capitais para a pesquisa do jurista, mas temas que
transformaram profundamente também o modo como o jurista olha a realidade e
obrigaram-no a rever categorias como o corpo e a pessoa. São categorias que
estavam fora da atenção do jurista”.[12]
Neste âmbito, sua contribuição também tem sido notável: Questioni di bioetica, [13] Tecnologie e diritti, [14] Tecnopolitica, [15] La vita e le regole, [16]
Dal soggetto alla persona. [17]
A obra A Vida na Sociedade da Vigilância é desta segunda fase. Surpreendentemente, é um livro que
existe somente no Brasil. O autor deu carta branca a seus editores brasileiros
para buscarem, dentre seus livros e artigos, incluindo alguns inéditos, aqueles
ensaios que mais interessariam ao nosso público. Colocou ainda à disposição os
relatórios anuais que fez como presidente da Autorità Garante, bem como conferências e discursos recentes. A
seleção do material foi tarefa prazerosa que desempenhei com Danilo Doneda. Menciono também aqui as imprescindíveis
contribuições de Bruno Lewicki, também
autor da ideia de traduzir a obra de Rodotà, e de Carlos Nelson Konder, Daniel
Bucar e Mario Viola, que se dispuseram a ler e rever a tradução.
A tradução jurídica, como se sabe,
visa alcançar uma equivalência entre
institutos, conceitos, categorias, modelos, considerando não apenas as características
específicas das línguas, mas também as especificidades dos sistemas jurídicos a
serem comparados. Além disso, adverte Jerzy Wróblewski, há múltiplas “línguas
jurídicas”: uma é a do legislador, outra a do juiz (a língua de aplicação do
direito) e ainda uma terceira é a “língua da ciência jurídica”. Esta última é a
mais complexa porque as clivagens são profundas na dogmática jurídica, na
metadogmática, na teorias do direito etc. [18]
Outro importante obstáculo
decorre da pluralidade de contextos que influenciam o sentido a ser dado às
expressões: há um contexto linguístico, um sistemático e um funcional. São as
diferenças de contexto sistemático que dificultam a equivalência dos termos entre
a Common Law e os países romano-germânicos. [19] Entre
países do mesmo sistema (ou família), no entanto, o contexto funcional, que
abrange a ocorrência de qualquer evento social, é o que cria maiores dificuldades. [20] Enfim,
não basta conhecer bem a língua e o sistema jurídico do texto a ser traduzido
mas é bom que se conheça também a ocasião histórico-social e, melhor ainda, o
autor. Daí a importância de a tradução ter sido realizada por Danilo Doneda (juntamente com Luciana Cabral
Doneda), que em seus estudos na Itália travou contatos frequentes com Rodotà. Já a tradução do texto que serve de introdução à
obra, escrito originalmente em inglês no final de 2007, é devida a Caitlin
Mulholland, conhecedora das questões telemáticas.
Procurou-se, no livro, trazer
à luz a principal marca do magistério de Rodotà: a extraordinária lucidez na
busca de soluções factíveis para os difíceis problemas criados pelas novas
tecnologias. Soluções que sejam, ao mesmo tempo, respeitadoras da dignidade da
pessoa humana e da democracia: na realidade, todas as suas afirmações podem ser
reconduzidas ao valor que atribui aos direitos existenciais, em cada uma de
suas expressões, tendo como norte o processo de “constitucionalização da
pessoa”, concretizado na Europa, a partir da Carta dos Direitos Fundamentais.
“Não se trata de impor um modelo”, pontua Rodotà, “mas tampouco se pode ceder a
um multiculturalismo regressivo que justificaria qualquer coisa em nome de
tradições e normas locais [...]. Não devemos nos envergonhar de uma pretensão
universalista, de um apelo aos direitos fundamentais, quando estão em jogo a
vida e a dignidade das pessoas”. [21] À
globalização através dos mercados Rodotà prefere a globalização através dos
direitos.
Nos textos que compõem esta obra,
o autor faz repetidos registros sobre dois aspectos que merecem ser aqui assinalados.
O primeiro aspecto refere-se ao corte que há entre a noção de privacidade do
século XIX e a de hoje; o segundo revela a extrema preocupação do autor com o
desenvolvimento das ferramentas da tecnologia da informação, em particular na
Internet, que, possibilitando a coleta e o processamento de dados
pessoais [22] em
larga escala, aumentam, dia a dia, o risco de violação dos direitos da pessoa
humana.
O notório conceito do “direito a
ficar só”, o direito à vida privada atribuído à elaboração de Warren e Brandeis
(mas na verdade, adverte o autor, concebido por Robert Kerr quarenta anos
antes), é qualitativamente diferente da privacidade como “direito à
autodeterminação informativa”, o qual concede a cada um de nós um real poder
sobre nossas próprias informações, nossos próprios dados. Percebe-se aqui,
segundo Rodotà, um ponto de chegada na longa evolução do conceito de
privacidade, da originária definição – the
right to be let alone – ao direito de manter o controle sobre as próprias
informações e de determinar as modalidades de construção da própria esfera
privada. Visto desta maneira, configura-se o direito à privacidade como um
instrumento fundamental contra a discriminação, a favor da igualdade e da liberdade.
De fato, nas sociedades de informação, como são as sociedades em que vivemos,
pode-se dizer que “nós somos as nossas informações”, pois que elas nos definem,
nos classificam, nos etiquetam; portanto, ter como controlar a circulação das
informações e saber quem as usa significa adquirir, concretamente, um poder
sobre si mesmo. [23]
O distanciamento entre as duas
mencionadas noções chegou à fratura na Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, bem como no Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa,[24]
onde se reconhecem dois direitos autônomos: no art. 7º da Carta (correspondente
ao art. II-7o do Tratado) afirma-se que “todas as pessoas têm
direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e
pelas suas comunicações”; e no art. 8º (no Tratado, o art. II-8o) se
estabelece que “todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter
pessoal que lhes digam respeito”. A distinção, sustenta Rodotà, “não é de
fachada: no direito ao respeito à vida privada e familiar manifesta-se,
sobretudo, o momento individualista e o poder exaure-se substancialmente na
exclusão da interferência de outrem; a tutela, portanto, é estática e negativa.
Já a proteção dos dados pessoais, ao contrário, fixa regras sobre a modalidade
de tratamento dos dados e concretiza-se em poderes de intervenção; a tutela é
dinâmica, segue os dados em sua circulação”. [25]
“Menos privacidade, mais
segurança” é uma receita falsa, avisa Stefano Rodotà. A propósito, ele recorre com
frequência à metáfora do homem de vidro, de matriz nazista. A ideia do homem de
vidro é totalitária porque sobre ela se baseia a pretensão do Estado de
conhecer tudo, até os aspectos mais íntimos da vida dos cidadãos, transformando
automaticamente em “suspeito” todo aquele que quiser salvaguardar sua vida
privada. Ao argumento de que “quem não tem nada a esconder, nada deve temer”, o
autor não se cansa de admoestar que o emprego das tecnologias da informação
coloca justamente o cidadão que nada tem a temer em uma situação de risco, de
discriminação. [26]
“Menos cidadãos, mais suspeitos” é a expressão estigmatizante do momento.
Rodotà diz-se muito preocupado
com a vida nesta sociedade de vigilância, cada vez mais observada, espionada,
espreitada e perscrutada. Nas palavras do então Garante: “Assediados por computadores, espiados por olhos furtivos,
filmados por câmeras invisíveis. Os cidadãos da sociedade da informação
correm o risco de parecer homens de vidro: uma sociedade que a informática e a
telemática estão tornando totalmente transparente”. [27]
Oferece exemplos que, embora arrepiantes,
têm parecido às sociedades em geral como inócuos ou benéficos, sempre bem-intencionados,
desde chips inseridos sob a pele de
fiscais mexicanos para ingresso em centro de documentação – e para rastreamento
em caso de seqüestro, no Brasil –, até o programa do governo inglês para vigiar
criminosos via satélite e controlar permanentemente sua localização. Mas é muito
pior, assegura Rodotà: “estamos assistindo a uma progressiva extensão das
formas de controle social, motivadas sobretudo por razões de segurança.
Trata-se de uma profunda mudança social. A vigilância passa de excepcional a
quotidiana, das classes ‘perigosas’ à generalidade das pessoas, do interior dos
Estados ao mundo global. A multidão não é mais ‘solitária’ e anônima: está nua.
A digitalização das imagens e as técnicas de reconhecimento facial consentem
extrair o indivíduo da massa, identificá-lo e segui-lo. O data mining, a incessante pesquisa de informações sobre o
comportamento de qualquer pessoa, gera uma produção contínua de ‘perfis’
individuais, familiares, territoriais, de grupo. A vigilância não conhece
fronteiras”. [28]
Diante desta realidade, Stefano
Rodotà não acredita que a única reação possível seja a da aceitação acrítica,
quase uma rendição, em direção a uma sociedade inevitavelmente transparente.
Será possível, indaga, que a representação da sociedade do futuro deva ser
aquela de um “supermercado total” e de uma completa “militarização anticrime” e
antiterrorismo? [29]
A União Europeia tem buscado
enfrentar estas questões com base no respeito à dignidade humana, princípio que
hoje abre a sua Carta de Direitos Fundamentais. A Diretiva Europeia n. 95/46/CE
determinou que os diversos países elaborassem princípios e regras para a proteção
dos dados pessoais, restringindo a atuação dos órgãos e/ou entidades na coleta
de dados privados, impondo a cada país-membro a instituição de uma autoridade
central responsável pela fiscalização de suas disposições. Condicionou ainda o
ingresso no Acordo de Schengen – o que permite a livre circulação dos cidadãos
no território europeu – à existência da lei nacional e ao efetivo
funcionamento da autoridade. Eis a razão pela qual todos os países europeus
contam hoje com uma comissão protetora dos dados pessoais.
Neste cenário, as soluções devem
passar, segundo Rodotà, por uma legislação de princípios e de códigos de
deontologia – contando estes com a participação direta das categorias
profissionais interessadas, que assim melhor podem assegurar a correspondência
à realidade do setor – reunidos com a finalidade de realizar uma disciplina
equilibrada relativamente às mudanças sociais. [30]
Muitos princípios em matéria de
proteção de dados pessoais já se estão consolidando no ambiente europeu. Além
do mencionado princípio da dignidade humana, aplicam-se à proteção dos dados
pessoais os princípios da finalidade, pertinência, proporcionalidade,
simplificação, harmonização e necessidade. Quanto a este último princípio, o da
necessidade, sublinha-se a sua importância por constituir uma frontal oposição
à tendência humana de utilizar sempre toda e qualquer inovação tecnológica
disponível: “o direito não deve render-se à razão tecnológica”, complementa o
autor. [31] Ainda
quanto ao princípio da necessidade, outra regra pôde ser deduzida; é preciso
circunscrever a coleta de informações ao mínimo indispensável de modo a
garantir a maior liberdade possível. Como compara Rodotà, “nos regimes
totalitários, a criminalidade é mais bem controlada; mas o preço é o sacrifício
da liberdade de todos”. Outra regra, decorrente do mesmo princípio, é que se
refere à estreita correlação entre os dados coletados e as finalidades
perseguidas. A coleta não pode ser tomada como uma “rede jogada ao mar para
pescar qualquer peixe”. Ao contrário, as razões de coleta, principalmente
quando se tratarem de ”dados sensíveis”, [32]
devem ser objetivas e limitadas. A
primeira é que a coleta de dados genéticos somente pode ser considerada
legítima em relação a pessoas sobre as quais pese alguma suspeita. Não são
admissíveis, portanto, testagens de massa. A segunda é que as amostras
legitimamente recolhidas devem ser conservadas por tempo determinado e não
podem servir a compor um banco de dados que fique à disposição das autoridades
para realizar qualquer outra finalidade. Isto é particularmente desafiador nos
Estados Unidos, onde não há normas gerais de proteção da privacidade e onde a
luta contra o terrorismo tem feito com que se conserve todo e qualquer dado
pessoal que possa ser útil no futuro. A terceira conclusão do autor refere-se
ao perigo de atribuir valor absoluto a qualquer amostra genética, temor que
paira sobre as consciências mais democráticas desde que na Inglaterra se
propôs, para os crimes ainda não solucionados, a “incriminação do genoma”, isto
é, de qualquer traço genético encontrado no local do crime.
Uma trama tão urdida de princípios
para a proteção dos dados pessoais responde à realidade de uma matéria que, por
sua amplitude e por sua tendência à aplicação em todo tipo de relação humana,
não pode ser confiada unicamente às formas disciplinares casuísticas. E a
legislação por princípios, para que possa atingir seus propósitos, deve servir
para a definição de um quadro geral, no interior do qual, a seguir, deverão ser
postas e interpretadas as disposições específicas. Esta foi a opção européia
para o tratamento e a proteção dos dados pessoais, levando Rodotà a concluir:
“importada dos Estados Unidos, a privacidade hoje é mais bem tutelada na
Europa”. [35]
A escolha brasileira, porém,
ainda não está feita. Espera-se que o respeito à dignidade humana, consagrado
no art. 1º, III, de nossa Constituição, bem como a tradição civilista que nosso
sistema encerra, aliados à chamada globalização através dos direitos, permita a
aproximação ao modelo europeu, privilegiando uma legislação por princípios.
Este, porém, não é o motivo principal desta publicação. A razão maior é a rara
beleza das originais idéias democráticas aqui defendidas, idéias que qualquer
estudante de Direito, qualquer interessado saberá apreciar.
As reflexões de Rodotà, de fato,
constituem um farol, um guia, uma direção para todos os que se preocupam com os
destinos da pessoa no mundo contemporâneo. Para além da dimensão acadêmica e teórica, suas palavras e atos expressam
uma vivência, lúcida e honesta, das idéias que propõe, e assim vão desvendando
o tipo humano especial, por detrás do grande jurista, que Rodotà personifica.
Maria Celina Bodin de
Moraes
Professora
Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Associada
do Departamento de Direito da PUC-Rio.
[1] Milano:
Giuffrè, 1964.
[2] Milano:
Giuffré, 1969.
[3] Bologna: Il Mulino, 1971.
[4] Bologna: Il Mulino, 1981.
[5] Em sua
carreira política, Rodotà foi eleito deputado, em 1979, pelo Partido Comunista
Italiano, como independente de esquerda, e nomeado membro da Commissione
affari costituzionali. Em 1983, reeleito deputado, passou a presidir o
grupo parlamentar Sinistra indipendente. Reeleito pela terceira vez em 1987, torna-se membro da Commissione della
camera per gli affari costituzionali, Affari della presidenza del consiglio
dei ministri, e Affari interni. Em 1992, novamente reeleito,
preside o Partito democratico della sinistra (PDS) e assume o cargo de
vice-presidente da câmara dos deputados. Além disso, foi membro da Commissione bicamerale sulle riforme
istituzionali e representante no parlamento europeu em Estrasburgo.
[6] V. S.
Rodotà. La Carta
come atto politico e documento giuridico. In: A. Manzella, P. Melograni, E. Paciotti e S. Rodotà. Riscrivere i diritti in Europa. Bologna:
Il Mulino, 2001, pp. 57-89.
[7] S. Rodotà. Entrevista à RTDC. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n.
11, jul.-set. 2002, pp. 226.
[8] S. Rodotà. Soggetto astratto e
soggetto reale. Diritto e culture della
politica. A cura di Stefano Rodotà. Roma: Carocci editore, 2004, p. 150.
[9] In: Rivista
trimestrale di diritto e procedura civile, 1960, pp. 1252-1341.
[10] A. Masi. Saluto del direttore
dell’Istituto di diritto privato. In: Il
diritto privato nella società moderna. Seminario in onore di Stefano Rodotà
a cura di Guido Alpa e Vincenzo Roppo. Napoli: Jovene, 2004, p. 8.
[11] S. Rodotà. Entrevista à RTDC, cit., p. 245.
[12] S. Rodotà. Entrevista à RTDC, cit., p.
230.
[13] Bari: Laterza, 1993.
[14] Bologna: Il Mulino, 1995.
[15] Bari: Laterza, 1997.
[16] Milano: Feltrinelli, 2006.
[17] Roma: Editoriale scientifica, 2007.
[18] J. Wróblewski. Il problema della traduzione
giuridica. Disponível em http://www.arsinterpretandi.it/ indice.asp?anno=2000,
acesso em 20.07.2007.
[19] Id., ibidem.
[20] V. R.
Sacco. Introdução ao direito comparado.
Trad. de V. Fradera. São Paulo: RT, 2001, p. 51 e ss.
[21] S.
Rodotà. Quelle pietre contro la
donna e il diritto all’ingerenza. In: La Repubblica, 18.12.2001.
[22] Dados pessoais são definidos como os dados relativos a
uma pessoa física ou jurídica, identificada ou identificável, capaz de revelar
informações sobre sua personalidade, relações afetivas, origem étnica ou
racial, ou que se refiram às suas características físicas, morais ou
emocionais, à sua vida afetiva e familiar, ao domicílio físico e eletrônico, número
telefônico, patrimônio, ideologia e opiniões políticas, crenças e convicções
religiosas ou filosóficas, estado de saúde físico ou mental, preferências
sexuais ou outras análogas que afetem sua intimidade ou sua autodeterminação
informativa.
[23] Nessuna
censura sulla privacy. In: La Repubblica,
13.04.1997.
[24] Este
Tratado foi assinado por representantes dos países-membros em outubro de 2004,
em Roma, porém dependia da ratificação posterior de todos os estados para que
entrasse em vigor. Em
seguida à ratificação pelos parlamentos da Eslovênia e da Grécia e da aprovação
por referendo na Espanha, em maio de 2005 os eleitores da França votaram pela
não-ratificação do texto e, logo após, os Países Baixos também optaram pela
não-ratificação. A crise desencadeada conduziu a um processo de reavaliação
institucional que culminou com a adoção do Tratado de Lisboa, de 13 de dezembro
de 2007, que determina diversas alterações no texto original do Tratado.
Disponível em ,
acesso em 04.08. 2007.
[25] Tra diritti fondamentali ed elasticità
della normativa: il nuovo codice sulla privacy. Disponível em
http://www.litis.it, acesso em 07.07.2005.
[26] S. Rodotà. L’organizzazione del nuovo mondo. Disponível
em http://magazine.enel.it, acesso em
20.03.2006.
[27] No original: “Assediati da controllori elettronici, spiati da occhi nascosti,
videosorvegliati da telecamere invisibili. Rischiano di somigliare a uomini di
vetro i cittadini dell’information society: una società che l’informatica e la
telematica stanno rendendo completamente trasparente” (Relatório do Garante per la tutela dei dati personali,
apresentado ao Presidente da República Italiana em 2000).
[28] S. Rodotà. Privacy, libertà,
dignità. Discurso de encerramento proferido na 26ª Conferência Internacional
sobre a Privacidade e a Proteção dos Dados Pessoais, em Wroclaw, Polônia,
16.09.2004.
[29] S.
Rodotà. Il secolo del Grande
Fratello: Il film ‘Nemico pubblico’ e il rischio che la tecnologia controlli la
vita del cittadino. In: La Repubblica,
20.01.1999.
[30] S.
Rodotà. Tra diritti fondamentali ed elasticità della normativa: il nuovo codice
sulla privacy, cit.
[31] Id., ibidem.
[32] Dados
sensíveis são os dados pessoais que dizem respeito à saúde, às opiniões
políticas ou religiosas, aos hábitos sexuais etc. aptos a gerar situações de
discriminação e desigualdade.
[33] New York Times, 07.01.2005.
[34] S.
Rodotà. Se la società impone la schedatura genetica. In: La Repubblica,
13.01.2005.
[35] S.
Rodotà. Uno statuto giuridico globale della persona elettronica. Discurso
proferido na 23ª Conferência Internacional sobre a Privacidade e a Proteção dos
Dados Pessoais, em Paris, 24.09.2001. Disponível em www.interlex.it, acesso em
20.03.2007.
Acesse o texto "O direito à verdade" de Stefano Rodotà em:http://civilistica.com/o-direito-a-verdade/
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