28 outubro 2013

Resolução CFM n. 2.013/2013 sobre reprodução assistida

Regras garantem direito à reprodução assistida para todos
 

O Conselho Federal de Medicina (CFM) publica a atualização da resolução que trata dos procedimentos de reprodução assistida no país. A Resolução CFM nº 2.013/13 (acesse a íntegra em PDF) destaca a segurança da saúde da mulher e a defesa dos direitos reprodutivos para todos os indivíduos. A última vez em que a resolução havia sido atualizada foi em 2010, depois de ficar quase 20 anos sem renovação. Para esta revisão, o CFM contou novamente com contribuições dos conselhos regionais de medicina do país e sociedades de especialidades. A resolução preenche uma lacuna importante, pois não existe no Brasil uma legislação que regulamente a prática da reprodução assistida.
A partir de agora, no Brasil a idade máxima para uma mulher se submeter às técnicas de reprodução assistida passa a ser 50 anos. O coordenador da Câmara Técnica de Reprodução Assistida do CFM, José Hiran Gallo, explica que esta medida levou em consideração a segurança da gestante e da criança: “pesquisas em todo mundo apontam que a fase reprodutiva da mulher é de até 48 anos e após essa idade os riscos são evidentes”.
Antes não havia um limite estabelecido e essa idade foi considerada pelo risco obstétrico. Segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), membro da Câmara Técnica do CFM, Adelino Amaral, para as mães, após 50 anos, elevam-se casos de hipertensão na gravidez, diabetes e aumento de partos prematuros. E para a criança, os problemas mais comum são o nascimento abaixo do peso e o parto prematuro.
Doação compartilhada - A Resolução do CFM ainda definiu os termos para a doação compartilhada de óvulos. Isso ocorre quando uma mulher, em tratamento para engravidar, doa parte dos seus óvulos para uma mulher mais velha (que não produz mais óvulos) em troca do custeio de parte do tratamento. Neste caso, a norma define a idade limite do doador de 35 anos para mulher e 50 para homem.
A nova redação também deixa mais claro quanto ao número de oócitos [mesmo que óvulos] e embriões [fecundação entre óvulo e espermatozoide] a serem transferidos no caso de doação: estes devem ser respeitada a idade da doadora e não da receptora. José Hiran Gallo explica que a decisão se dá porque a qualidade dos óvulos doados são maiores: “a paciente acima de 40 anos tem probabilidade de engravidar em torno 10%, já as pacientes menores de 35 tem chances acima de 40%. Essa limitação reduz as chances de gestação múltipla, que seria mais um fator de risco para mulheres mais velhas. É preciso ficar atento à maturidade desses óvulos e não de sua receptora”.
Diversidade - Outra questão abordada na nova norma do CFM diz respeito ao tratamento de reprodução para casais homoafetivos. A resolução anterior dizia que "qualquer pessoa" poderia ser submetida ao procedimento "nos limites da resolução", no entanto os casais formados por pessoas de mesmo sexo esbarravam em diferentes interpretações. Agora a resolução do CFM deixou mais claro esse direito: “é permitido o uso das técnicas de reprodução assistida para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito da objeção de consciência do médico”.
De acordo com o presidente do CFM, Roberto d’Avila, a aprovação da medida é um avanço porque “permite que a técnica seja desenvolvida em todas as pessoas, independentemente de estado civil ou orientação sexual. É uma demanda da sociedade moderna. A medicina não tem preconceitos e deve respeitar todos de maneira igual”.
Para auxiliar nesses casos o CFM ampliou o parentesco para doadoras temporárias do útero. Estas devem pertencer à família de um dos parceiros num parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau – mãe; segundo grau – irmã/avó; terceiro grau – tia; quarto grau – prima). Em todos os casos também devem respeitada a idade limite de até 50 anos.
Descarte - Com base em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que autoriza o uso de embriões para pesquisa com células tronco, e considerando o crescente estoque de material genético, o texto, elaborado pela Câmara Técnica de Reprodução Assistida do CFM, também abordou este tema.
Uma das alterações da Resolução trata do descarte de embriões que estão nas clinicas de reprodução assistida e que não serão mais utilizados pelos casais, como os casos dos que já tiveram seus filhos, estão em separação, ou houve morte de um dos cônjuges. Existem muitos embriões que estão abandonados há 15 anos e não são aproveitados.
Segundo a norma do CFM, após cinco anos, os embriões criopreservados podem ser doados para outros pacientes; doados para pesquisas; ou descartados.Se for da vontade do paciente, esses embriões também podem continuar congelados desde que os pacientes expressem essa vontade e assumam as responsabilidades por essa decisão.
Relatório da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aponta que no Brasil 26.283 embriões foram congelados somente no ano de 2011. Para congelar esses embriões, os casais pagam uma taxa que varia entre R$ 600 e R$ 1,2 mil, e para mantê-los neste processo é preciso arcar com uma mensalidade. Entretanto cerca de 80% desse material é abandonado pelos pacientes e o banco que arca com as despesas da manutenção repondo nitrogênio e garantindo espaço físico. “A responsabilidade técnica deste material abandonado só ficará a cargo da clínica por cinco anos. Faremos uma convocação desses casais que já abandonaram os embriões e conscientizaremos os próximos pacientes das possibilidades de doação e descarte”, declarou Adelino Amaral.

Principais contribuições da Resolução CFM nº 2.013/13:
IDADE DA PACIENTE - A idade máxima das candidatas à gestação de reprodução assistida é de 50 anos.
DOAÇÃO COMPARTILHADA - Libera a medida e limita a idade da doadora em 35 anos.
IDADE LIMITE PARA DOAÇÃO DE ESPERMATOZOIDES - 50 anos.
ÚTERO DE SUBSTITUIÇÃO - Ampliou-se para parentesco consanguíneo de até 4º grau.
TRANSFERÊNCIA - A nova redação também deixa mais claro quanto ao número de oócitos e embriões a serem transferidos no caso de doação: estes devem ser respeitado a idade da doadora e não da receptora.
DESCARTE - os embriões criopreservados acima de cinco anos, poderão ser descartados se esta for a vontade dos pacientes.
HOMOAFETIVIDADE – É permitido o uso das técnicas de reprodução assistida para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito da objeção de consciência.

Fonte: Portal Médico

Jurisprudência. Decisão do STJ. Responsabilidade civil de blog por publicação

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24 outubro 2013

Diferença de um centavo não gera deserção, diz TST

A falta de apenas um centavo no depósito exigido para o ajuizamento de recurso no Tribunal Superior do Trabalho não gera deserção que prejudique o julgamento do pedido. O entendimento é da 8ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, que afastou deserção decretada pelo presidente do TST, ministro João Orestes Dalazen, em Agravo de Instrumento interposto pela empresa K. N. do Brasil, em cujo depósito recursal faltava um centavo.

Para a relatora, ministra Dora Maria da Costa, não houve deserção. O entendimento se baseia na Orientação Jurisprudencial 140, que afirma ser deserto o recurso quando o recolhimento das custas e do depósito for insuficiente. "Trata-se de quantia sem expressão monetária, sendo certo, ainda, que a OJ 140 da SDI-1 se reporta a centavos, no plural, o que não abrange a situação vertente", afirmou, e negou provimento ao agravo, sendo seguida pelos demais membros do colegiado.

Essa decisão foi arrojada, mostrando que o tribunal não está enclausurado em sua jurisprudência e que existe possibilidade de rediscussão dessa matéria no TST. Aí está a importância dos advogados em provocar uma discussão nesse sentido”, opinou o advogado Maurício Veiga, que não atua no caso.


Notas:
1. Deserção: "Deserção de recursos significa o abandono processual pelas partes em decorrência do não recolhimento das custas devidas, em prazo regimental". (v. Glossário Jurídico do STF)

2.  TST. Orientação jurisprudencial 140: "Ocorre deserção do recurso pelo recolhimento insuficiente das custas e do depósito recursal, ainda que a diferença em relação ao “quantum” devido seja ínfima, referente a centavos".

3. Em negrito, foram ressaltados o argumento literal da relatora (em oposição ao argumento literal do presidente do TST) e a opinião de um advogado da área.

4. Leia aqui a coluna de Lenio Streck que considerou ter havido um avanço no campo do Direito.  

Será?

Apontamentos críticos e provocativos sobre a relativização da coisa julgada: um novo enfoque para uma instigante controvérsia

OBS. Texto destinado unicamente àqueles que desejam tentar aventurar-se um pouco mais na noção de coisa julgada.

 

Umberto PAULINI



1. Introdução; 2. Esclarecimentos preliminares acerca dos conceitos de coisa julgada material, coisa julgada formal e preclusão; 3. O valor constitucional da coisa julgada material; 4. Erro ao aplicar a máxima da proporcionalidade como critério de relativização da coisa julgada: trata-se de uma regra e não de um princípio; 5. Uma nova proposta de relativização da coisa julgada: circunstâncias (e não direitos) que poderiam ensejar sua desconsideração; 6. Conclusão; 7. Referências Bibliográficas.


1. Introdução

O presente ensaio tem como objetivo apresentar ao leitor um novo enfoque da problemática da relativização da coisa julgada a partir da premissa de que o instituto em questão caracteriza-se como sendo uma regra e não um princípio. Para tanto, a jornada proposta terá como ponto de partida a compreensão da distinção entre os conceitos de coisa julgada material, coisa julgada formal e preclusão. Logo em seguida, será colocado em voga o valor constitucional da coisa julgada, expondo-se os motivos que levam a qualificá-la como verdadeiro direito fundamental. Mais à frente, uma análise detalhada da distinção entre princípios e regras levará ao entendimento de que a máxima da proporcionalidade não é um instrumento adequado para a relativização da coisa julgada, pois esta é uma regra. Como apenas um motivo extremamente forte pode levar a não aplicação de uma regra em favor de um princípio, estuda-se, ao final, um critério de relativização da coisa julgada fundado em circunstâncias (e não direitos) que poderiam macular a própria ideia de jurisdição.

Deixa-se em aberto, evidentemente, a pesquisa sobre outros inúmeros enfoques que a imbricação dos temas apresentados poderia revelar, uma vez que o presente ensaio não possui a pretensão de esgotar a problemática atinente ao assunto discorrido, mesmo porque tal tarefa demandaria muito mais do que este simples estudo jurídico.

2. Esclarecimentos preliminares acerca dos conceitos de coisa julgada material, coisa julgada formal e preclusão

Não há como falar em relativização da coisa julgada sem antes delinear o que, em verdade, este instituto representa, bem como o seu respectivo alcance e terreno de atuação. A falta de tais definições poderia criar dois riscos em sentidos opostos. Por um lado, arrisca-se cogitar de falsos problemas de “coisa julgada a relativizar”, ou seja, atribuir a coisa julgada a situações em que ela não se faz presente. Por outro, há o risco da pretensa solução de problemas que verdadeiramente envolvem “coisa julgada” mediante artifícios destinados a negar sua ocorrência.[1] Daí a importância de um capítulo preliminar voltado ao estudo de conceitos utilizados pela manualística e pela jurisprudência sem uma reflexão mais apurada.
    
Como assevera Cândido Rangel DINAMARCO, um dos valores buscados pela ordem jurídico-processual é o da segurança nas relações jurídicas, de maneira que “as decisões judiciárias, uma vez tomadas, isolam-se dos motivos e do grau de participação dos interessados e imunizam-se contra novas razões ou resistências que se pensasse em opor-lhes”.[2] O curso processual leva o pronunciamento judicial a um ponto de firmeza que se qualifica como estabilidade e que varia de grau conforme o caso. O mais elevado grau de estabilidade dos atos estatais é representado pela coisa julgada que, na conhecida acepção de LIEMAN, é definida como imutabilidade da sentença e de seus efeitos.[3]

Contudo, quando na prática jurídica faz-se menção à ideia de coisa julgada, na maioria das vezes, está-se referindo à coisa julgada material, muito embora a coisa julgada formal não represente outro instituto de substância diversa, pois se trata apenas de dois aspectos do mesmo fenômeno (imutabilidade dos efeitos da sentença), ambos responsáveis pela segurança nas relações jurídicas. O ponto que separa os dois institutos diz respeito tão somente à extensão da referida imutabilidade: intraprocessual ou extraprocessual.

Segundo Eduardo TALAMINI, a coisa julgada material pode ser configurada como “uma qualidade de que se reveste a sentença de cognição exauriente de mérito transitada em julgado, qualidade essa consistente na imutabilidade do conteúdo do comando sentencial”.[4]Uma vez consumada, reputa-se consolidada no presente e para o futuro a situação jurídico-material das partes, relativa ao objeto do julgamento e às razões que uma delas tivesse para sustentar ou pretender alguma outra situação. Toda possível dúvida está definitivamente dissipada, quanto ao modo como aqueles sujeitos se relacionaram juridicamente na vida comum, ou quanto à pertinência de bens a um deles.[5]

No tocante ao âmbito de incidência, a coisa julgada pode recair apenas sobre atos jurisdicionais.Mais especificamente, mesmo entre os atos jurisdicionais, apenas aqueles que contenham um suficiente grau de intensidade de cognição são compatíveis com a coisa julgada. Nesse sentido, não são todos os atos jurisdicionais decisórios que fazem coisa julgada. Aliás, revela-se inadequado o conceito de coisa julgada presente na Lei de Introdução ao Código Civil [hoje chamada de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro], que vincula a coisa julgada a toda “decisão judicial de que já não caiba recurso”. No sistema de direito positivo, é o art. 485 do Código de Processo Civil que estabelece de modo mais preciso o âmbito de incidência da coisa julgada material, ao prever para sua desconstituição a ação rescisória em face de “sentença de mérito transitada em julgado”.

Registre-se, portanto, que apenas a sentença que decide o mérito da demanda – que pode ser representado por um direito, por uma relação jurídica ou por uma situação processual – estará apta a fazer coisa julgada material. Assim, estão alheios à coisa julgada material os atos judiciais não decisórios (por exemplo, os atos executivos), as decisões interlocutórias, as sentenças que extinguem o processo sem julgamento de mérito, as sentenças que encerram o processo executivo (pois não julgam o mérito) e as sentenças de cognição sumária (por exemplo, nos processos urgentes, na jurisdição voluntária, etc.).[6]

Outro aspecto da coisa julgada material está ligado ao trânsito em julgado. Não basta tratar-se de sentença de mérito. Para que se estabeleça a coisa julgada é preciso que estejam esgotadas as possibilidades de alteração da sentença mediante mecanismos internos ao processo em que ela foi proferida. Note-se, porém, que o trânsito em julgado e a coisa julgada não se confundem. Evidentemente, não há coisa julgada sem que tenha havido o trânsito em julgado, mas nem sempre o trânsito em julgado traz consigo a coisa julgada material, podendo formar-se sobre a pretensão deduzida em juízo somente a coisa julgada formal, de que se fala mais adiante.[7]



Notas:
[1] TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 30.
[2] DINAMARCO, Candido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In.: NASCIMENTO, Carlos Valder do (org.).Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 36.
[3] Idem, ibidem.   
[4] TALAMINI, Eduardo. Op. Cit. p. 30.
[5] DINAMARCO, Candido Rangel. Op. Cit. p. 37.
[6] TALAMINI, Eduardo. Op. Cit. p. 31.
[7] Idem. p. 32.

22 outubro 2013

Os últimos 25 anos e o futuro



 Em estudo sobre a cultura jurídica dos países latino-americanos, especialmente voltado para a experiência brasileira, um dos maiores historiadores do direito da atualidade, António Manuel Hespanha1 realiza, de forma sintética, um balanço dos sucessos e das frustrações destes primeiros 25 anos de vigência da Constituição Cidadã de 1988.2 O saldo, indiscutivelmente, é positivo. Conforme salienta o autor, o “caso brasileiro” tem revelado uma concepção crítica e socialmente comprometida do Direito, de tal modo que, em termos comparativos, o discurso jurídico europeu não mais se pode considerar inovador ou de vanguarda. O processo pode ser representado a partir de inúmeros fatores: a mudança do texto constitucional para uma posição central no ordenamento jurídico; o reconhecimento da força normativa das disposições constitucionais; a substituição de um positivismo legalista por um positivismo constitucional; a consequente ampliação do papel do juiz na concretização do conteúdo dos princípios extraídos da Constituição; o ativismo judicial e a crença no papel emancipatório e transformador da hermenêutica jurídica.

Assim delineou-se o direito constitucionalizado brasileiro após 1988, cada vez mais consciente de seu compromisso para com a promoção dos valores personalistas e solidaristas pretendidos pelo constituinte. Em perspectiva comparatista, observa Hespanha: “Enquanto na Europa a doutrina e o foro tendem a alinhar por padrões de julgamento orientados para aspetos técnicos, geralmente alheios às impuras problemáticas humanas e sociais e favoráveis ao Direito reconhecido por um jet set de juristas cosmopolitas, a judicatura brasileira está muito ligada ao ciclo contemporâneo da cultura política pop latino-americana, social e politicamente comprometida, confiante nas virtualidades das formas civilizacionais aí emergentes”.3

A revolução que essa perspectiva representa para a própria compreensão do papel do Direito na sociedade é inegável, mas a forma como o processo vem se desenvolvendo não ocorre sem sacrifício: não à toa, a invocação (e, não raro, a defesa honestamente intencionada) dos princípios constitucionais vem acompanhada de uso completamente atécnico e assistemático dos conceitos, institutos e instrumentos jurídicos já conhecidos pelo intérprete, numa aparente tentativa de inventar a roda quadrada.

De fato, embora se esteja criando um direito brasileiro no que tange aos objetivos e valores socialmente relevantes buscados pelo jurista no Brasil atual, voltado para a solução dos problemas nacionais, falta-nos ainda a técnica jurídica adequada para acompanhá-los. Em nossa defesa, é preciso lembrar que, assim como ocorreu nas primeiras duas décadas do século passado – reputado o breve século XX – vivemos em um período de grande indefinição. Sabemos quais são os problemas, mas, aparentemente, ainda não temos os instrumentos necessários para solucioná-los. Segundo Zygmunt Bauman, vivemos em um período de interregno (“inter rex”), semelhante ao que ocorreu em Roma na lendária transição do trono em virtude da morte de Rômulo, seu mítico fundador.

Se, por um lado, como observa Hespanha, “na origem dessa nova perspectiva crítica do Direito está a ideia social e politicamente militante de que a dogmática jurídica e aqueles que a cultivam devem estar comprometidos com objetivos de política social; não interessando tanto o sentido em que estes são concretizados, mas o simples fato de se reconhecer que o Direito e os juristas devem responder aos problemas da sociedade”;4 por outro lado, faz-se necessário alertar que a consolidação da metodologia pós-positivista e da constitucionalização do direito civil tem sinalizado para um perigo crescente: a superação do formalismo por uma perspectiva mais flexível e principiológica deu lugar, e agora nos deparamos com o risco oposto, ao excessivo voluntarismo judicial. O receio dos juristas tradicionais parece encontrar eco quando nos deparamos com decisões que, sob o pretexto da constitucionalização e da aplicação dos princípios, mais parecem realizar o que já foi chamado de “carnavalização” do Direito.5

Não sem algum paradoxo – especialmente em se considerando que a tradição dos países da família romano-germânica sempre foi a de apresentar um direito de professores, mais do que a de um direito dos tribunais –, poder-se-ia acrescentar à análise de Hespanha a constatação de que, mais do que um agigantamento do papel da doutrina na interpretação e concretização dos princípios que passaram a ocupar este papel central no ordenamento, o direito legislado e teoricamente majoritário tem sido substituído, no Brasil atual, cada vez mais pelo direito julgado, produzido pela magistratura. Ainda seguindo a tendência da importação “à brasileira” de modelos estrangeiros, tem-se assistido a uma progressiva aproximação do sistema brasileiro a um modelo que remete ao da common law – não fosse o fato, prontamente apontado pela doutrina mais atenta, de que a cada vez maior vinculação das decisões judiciais pretéritas não foi acompanhada, no Brasil, do arcabouço teórico e instrumental com que conta nos países anglo-saxônicos.6

A superação de uma aplicação robótica da lei não pode servir de pretexto para se conferir à magistratura carta branca para decidir de acordo com suas concepções pessoais, mediante a invocação genérica de algum princípio constitucional que o juiz acredite amparar sua própria e individual versão de justiça.7 Portanto, seja a constatação de que vivemos em uma era de incertezas, seja a de que o mecanismo de aplicação do Direito é hoje guiado por uma lógica, por assim dizer, informal (“fuzzy”) não permite abrir mão da segurança jurídica. A previsibilidade das decisões judiciais é também uma questão de justiça, pois decorre da necessária coerência e harmonia que devem caracterizar o sistema.8 Ao que parece, parte do Judiciário não percebeu que a derrubada do limite externo, formal, que restringia o intérprete – o dogma da subsunção – não significou a consagração do arbítrio, mas, ao contrário, impôs um limite interno, – metodológico: a exigência de fundamentação argumentativa da sentença.

À míngua de instrumentos criados especificamente para estes novos objetivos e de uma academia jurídica plenamente consolidada, o direito brasileiro ainda recorre a tradicionais modelos estrangeiros: “a doutrina europeia e norte-americana continua a ser citada e usada; mas recebida de forma pragmática e ‘impura’, usada de forma tópica, por vezes para obter resultados que não têm muito a ver com a sua lógica original”.9

Sem a tradição da common law, mas com a importação da noção de precedentes vinculantes,10 é de se duvidar que o intérprete brasileiro disponha de técnica necessária para produzir a distinção entre casos concretos aos quais se aplica ou não determinado precedente (o chamado distinguishing nos países anglo-saxões).11 O projeto do novo Código de Processo Civil é um dos exemplos mais emblemáticos do caminhar, talvez irreversível, em direção à construção desse modelo norte-sul-americano de um direito dos juízes – e um exemplo ainda melhor de como a doutrina nacional precisa elaborar com urgência a hermenêutica, os instrumentos legais e mesmo o ensino jurídico desta nova realidade, sob pena da ruína do sistema.



Maria Celina Bodin de Moraes

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1Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Doutor Honoris Causa pela Université de Lucerne, na Suíça (2010) e pela Universidade Federal do Paraná (2013). Professor visitante em diversas instituições universitárias portuguesas e estrangeiras (Bélgica, Espanha, França, Alemanha, Itália, Noruega, Suécia, Suíça, Argentina, Brasil, Canadá, Estados Unidos da América, México, China, Índia) e autor de numerosas obras científicas, dentre as quais se incluem: A História do Direito na História Social, 1977; História das Instituições. Épocas medieval e moderna, 1982; Lei, Justiça, Litigiosidade. História e prospectiva, 1993; História de Portugal moderno. Político-institucional, 1995 (ed. brasileira, 2006); Cultura Jurídica Europeia. Síntese de um milénio, 1996 (ed. ital. Bologna, 2000; ed. cast. Madrid, 2002; ed. brasileira, 2005); O caleidoscópio do direito. O direito e a justiça no mundo dos nossos dias, Almedina, 2007; Hércules confundido. “Sentidos improváveis e variados do constitucionalismo oitocentista. O caso português”, Juruá,  2009 e Caleidoscópio do Antigo Regime, Alameda, 2010.
2As culturas jurídicas dos mundos emergentes. O caso brasileiro. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n. 56, p. 13-21, 2012.
3Idem, p. 20.
4António Manuel Hespanha, As culturas jurídicas dos mundos emergentes, cit., p. 15.
5Daniel Sarmento. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda. In C. P. de Souza Neto e D. Sarmento (coord.). A constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 113-148.
6Demonstra primorosamente as razões do permanente descompasso entre os dois sistemas Richard Hyland. Shall We Dance? In P. Cappellini e B. Sordi (ed.). Codici: una riflessione di fine millennio. Milano: Giuffrè, 2002, p. 377-400, texto cuja tradução já foi gentilmente autorizada pelo autor para publicação no próximo número da civilistica.com.
7Sobre o tema, por todos, v. Luiz Werneck Vianna et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
8Sobre o tema, Ricardo Garcia Manrique. Acerca del valor moral de la seguridad jurídica. Doxa, n. 26 (2003). Sobre a compatibilidade entre segurança jurídica e superação do formalismo, v. Antonio- Enrique Pérez Luño. La seguridad jurídica. Barcelona: Ariel, 1994.
9António Manuel Hespanha, As culturas jurídicas dos mundos emergentes, cit., p. 16.
10Constituição Federal, art. 103-A.
11Embora atualmente seja comum a referência ao termo “precedente”, especialmente pelos Tribunais Superiores, não se trata da mesma coisa: o nosso precedente, necessariamente plural e relativo ao direito, denota, na verdade, o comportamento da “jurisprudência”, enquanto o “precedente” em sua acepção original, de matriz anglo-americana, normalmente é único e refere-se aos fatos principais da demanda. Trata-se, portanto, de diferenças estruturais, qualitativas e quantitativas. Para essas e outras considerações acerca das consequências da mencionada diferença, v. Michele Taruffo. Precedente e giurisprudenza. Roma: Editoriale scientifica, 2007, passim.

08 outubro 2013

Cum grano salis

 Diz-se que a expressão cum grano salis (expressão latina  que significa "com um grão de sal") remonta a Plínio, o Velho, que a usou em sua obra sobre História Natural (Historia Naturalis XXIII, 149), afirmando que o General Pompeu possuía um remédio contra o veneno de determinada cobra e recomendando que ao usar o antídoto se tomasse o cuidado de adicionar um grão de sal ("addito grano salis" depois transformado em "cum grano salis").  

A interpretação da frase original, porém, é incerta. Não se sabe se o sal indicado por Plínio servia para tornar o antídoto eficaz ou se, ao contrário, Plínio já tinha dúvidas sobre a eficácia da receita e, por isso, ironicamente, recomendou a adição de um único grão de sal.

A compreensão mais culta indica que cum grano salis é termo atualmente usado para restringir a declaração e tornar o ouvinte/leitor consciente de que o que é dito não pode ser tomado literalmente, mas, pode ser sarcástico ou formulado com exagero, e, portanto, apenas com reservas ("por alto") deve ser compreendido. Nesse caso, portanto, a expressão é usada para que ressalvar que afirmação não precisa ser verdadeira em todos os aspectos, podendo ser verdadeira em apenas "um grão", isto é, em um único aspecto.


No sentido acima indicado veja-se aqui e aqui.

Todavia, como prova de que a Internet deve ser usada cum grano salis, encontra-se com facilidade e frequência a interpretação oposta, isto é, o sentido de que a afirmação a que se refere deve ser considerada muito seriamente.

01 outubro 2013

O monumental problema das falsas memórias



N.B.: Quem tiver dificuldades em entender o inglês falado, especialmente em uma palestra interessante como essa, deve recorrer às legendas no próprio idioma - o que é, by the way, uma das melhores formas de treinar uma língua estrangeira. Não há, ainda, legendas em pt.