24 outubro 2013

Apontamentos críticos e provocativos sobre a relativização da coisa julgada: um novo enfoque para uma instigante controvérsia

OBS. Texto destinado unicamente àqueles que desejam tentar aventurar-se um pouco mais na noção de coisa julgada.

 

Umberto PAULINI



1. Introdução; 2. Esclarecimentos preliminares acerca dos conceitos de coisa julgada material, coisa julgada formal e preclusão; 3. O valor constitucional da coisa julgada material; 4. Erro ao aplicar a máxima da proporcionalidade como critério de relativização da coisa julgada: trata-se de uma regra e não de um princípio; 5. Uma nova proposta de relativização da coisa julgada: circunstâncias (e não direitos) que poderiam ensejar sua desconsideração; 6. Conclusão; 7. Referências Bibliográficas.


1. Introdução

O presente ensaio tem como objetivo apresentar ao leitor um novo enfoque da problemática da relativização da coisa julgada a partir da premissa de que o instituto em questão caracteriza-se como sendo uma regra e não um princípio. Para tanto, a jornada proposta terá como ponto de partida a compreensão da distinção entre os conceitos de coisa julgada material, coisa julgada formal e preclusão. Logo em seguida, será colocado em voga o valor constitucional da coisa julgada, expondo-se os motivos que levam a qualificá-la como verdadeiro direito fundamental. Mais à frente, uma análise detalhada da distinção entre princípios e regras levará ao entendimento de que a máxima da proporcionalidade não é um instrumento adequado para a relativização da coisa julgada, pois esta é uma regra. Como apenas um motivo extremamente forte pode levar a não aplicação de uma regra em favor de um princípio, estuda-se, ao final, um critério de relativização da coisa julgada fundado em circunstâncias (e não direitos) que poderiam macular a própria ideia de jurisdição.

Deixa-se em aberto, evidentemente, a pesquisa sobre outros inúmeros enfoques que a imbricação dos temas apresentados poderia revelar, uma vez que o presente ensaio não possui a pretensão de esgotar a problemática atinente ao assunto discorrido, mesmo porque tal tarefa demandaria muito mais do que este simples estudo jurídico.

2. Esclarecimentos preliminares acerca dos conceitos de coisa julgada material, coisa julgada formal e preclusão

Não há como falar em relativização da coisa julgada sem antes delinear o que, em verdade, este instituto representa, bem como o seu respectivo alcance e terreno de atuação. A falta de tais definições poderia criar dois riscos em sentidos opostos. Por um lado, arrisca-se cogitar de falsos problemas de “coisa julgada a relativizar”, ou seja, atribuir a coisa julgada a situações em que ela não se faz presente. Por outro, há o risco da pretensa solução de problemas que verdadeiramente envolvem “coisa julgada” mediante artifícios destinados a negar sua ocorrência.[1] Daí a importância de um capítulo preliminar voltado ao estudo de conceitos utilizados pela manualística e pela jurisprudência sem uma reflexão mais apurada.
    
Como assevera Cândido Rangel DINAMARCO, um dos valores buscados pela ordem jurídico-processual é o da segurança nas relações jurídicas, de maneira que “as decisões judiciárias, uma vez tomadas, isolam-se dos motivos e do grau de participação dos interessados e imunizam-se contra novas razões ou resistências que se pensasse em opor-lhes”.[2] O curso processual leva o pronunciamento judicial a um ponto de firmeza que se qualifica como estabilidade e que varia de grau conforme o caso. O mais elevado grau de estabilidade dos atos estatais é representado pela coisa julgada que, na conhecida acepção de LIEMAN, é definida como imutabilidade da sentença e de seus efeitos.[3]

Contudo, quando na prática jurídica faz-se menção à ideia de coisa julgada, na maioria das vezes, está-se referindo à coisa julgada material, muito embora a coisa julgada formal não represente outro instituto de substância diversa, pois se trata apenas de dois aspectos do mesmo fenômeno (imutabilidade dos efeitos da sentença), ambos responsáveis pela segurança nas relações jurídicas. O ponto que separa os dois institutos diz respeito tão somente à extensão da referida imutabilidade: intraprocessual ou extraprocessual.

Segundo Eduardo TALAMINI, a coisa julgada material pode ser configurada como “uma qualidade de que se reveste a sentença de cognição exauriente de mérito transitada em julgado, qualidade essa consistente na imutabilidade do conteúdo do comando sentencial”.[4]Uma vez consumada, reputa-se consolidada no presente e para o futuro a situação jurídico-material das partes, relativa ao objeto do julgamento e às razões que uma delas tivesse para sustentar ou pretender alguma outra situação. Toda possível dúvida está definitivamente dissipada, quanto ao modo como aqueles sujeitos se relacionaram juridicamente na vida comum, ou quanto à pertinência de bens a um deles.[5]

No tocante ao âmbito de incidência, a coisa julgada pode recair apenas sobre atos jurisdicionais.Mais especificamente, mesmo entre os atos jurisdicionais, apenas aqueles que contenham um suficiente grau de intensidade de cognição são compatíveis com a coisa julgada. Nesse sentido, não são todos os atos jurisdicionais decisórios que fazem coisa julgada. Aliás, revela-se inadequado o conceito de coisa julgada presente na Lei de Introdução ao Código Civil [hoje chamada de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro], que vincula a coisa julgada a toda “decisão judicial de que já não caiba recurso”. No sistema de direito positivo, é o art. 485 do Código de Processo Civil que estabelece de modo mais preciso o âmbito de incidência da coisa julgada material, ao prever para sua desconstituição a ação rescisória em face de “sentença de mérito transitada em julgado”.

Registre-se, portanto, que apenas a sentença que decide o mérito da demanda – que pode ser representado por um direito, por uma relação jurídica ou por uma situação processual – estará apta a fazer coisa julgada material. Assim, estão alheios à coisa julgada material os atos judiciais não decisórios (por exemplo, os atos executivos), as decisões interlocutórias, as sentenças que extinguem o processo sem julgamento de mérito, as sentenças que encerram o processo executivo (pois não julgam o mérito) e as sentenças de cognição sumária (por exemplo, nos processos urgentes, na jurisdição voluntária, etc.).[6]

Outro aspecto da coisa julgada material está ligado ao trânsito em julgado. Não basta tratar-se de sentença de mérito. Para que se estabeleça a coisa julgada é preciso que estejam esgotadas as possibilidades de alteração da sentença mediante mecanismos internos ao processo em que ela foi proferida. Note-se, porém, que o trânsito em julgado e a coisa julgada não se confundem. Evidentemente, não há coisa julgada sem que tenha havido o trânsito em julgado, mas nem sempre o trânsito em julgado traz consigo a coisa julgada material, podendo formar-se sobre a pretensão deduzida em juízo somente a coisa julgada formal, de que se fala mais adiante.[7]



Notas:
[1] TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 30.
[2] DINAMARCO, Candido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In.: NASCIMENTO, Carlos Valder do (org.).Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 36.
[3] Idem, ibidem.   
[4] TALAMINI, Eduardo. Op. Cit. p. 30.
[5] DINAMARCO, Candido Rangel. Op. Cit. p. 37.
[6] TALAMINI, Eduardo. Op. Cit. p. 31.
[7] Idem. p. 32.

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