27 fevereiro 2014

Só para dar uma ideia...

Enigmático mundo do direito das sucessões

Tarlei Lemos Pereira



Nesse complexo mundo, o difícil é falar fácil: adenção, adição da herança, bens de raiz, caudal hereditário, herança bruta, cerrar e coser, decesso, defunção, trespasse, exerdação, em público e raso, estípite, herança danosa, heréu, irmãos colaços, monte-mor, posse civilíssima, primo de todo mundo, revogação nua, supérstite, testamento nuncupativo, usufruto vidual...

Escrever é uma arte, já o disse Arthur Schopenhauer. Escrever um texto jurídico, então, envolve, por assim dizer, o domínio de duas artes: a primeira, a arte da língua portuguesa; a segunda, a arte (rectius: Ciência) do Direito.

A linguagem dos operadores do Direito deve ser correta, clara e persuasiva, sem descurar da tecnicidade a ela inerente. Sabe-se que a palavra é o símbolo da ideia, portanto é necessário conhecer o seu exato significado, de modo a transmitir ao leitor precisamente aquilo que se pretende, com suficiente grau de enfoque.

Nossa legislação, doutrina e jurisprudência, utilizam em grande extensão palavras e expressões que, muitas vezes, são de difícil compreensão, por imprimirem sentido demasiadamente técnico e restrito. Recorrer aos dicionários jurídicos passa a ser, nesse contexto, atividade quase diária dos profissionais que se esmeram no uso da língua.

O Direito das Sucessões está repleto de terminologia técnica ou, como preferem alguns, vale-se frequentemente de palavras "difíceis", que desafiam nosso intelecto a todo instante na tentativa de desvendar o seu enigmático mundo. Mas, seria impossível que os sucessionistas se expressassem de maneira clara e "fácil", objetivando aproximar o jurisdicionado dos assuntos inerentes à Justiça? O movimento norte-americano denominado "plain language" (algo como "linguagem clara e objetiva") teria aplicação no Brasil?

Pensamos que deva haver uma forma (técnica) de "falar fácil", já que "falar difícil" pode revelar alguma erudição do narrador, porém frequentemente impede a exata compreensão da ideia que se quer transmitir ao ouvinte ou leitor.

Alguns exemplos podem ser colhidos no "Dicionário Didático do Direito das Sucessões", de Eliasar Rosa, Ed. Lumen Juris, 1994, livro fininho, mas de inestimável valor.

Em vez de utilizarmos a palavra "adenção", poderíamos nos referir simplesmente à revogação do legado ou doação. "Adição da herança" significa, etimologicamente, ir em direção a ela, isto é, aceitá-la. Melhor dizer "bens imóveis" e não "bens de raiz", expressão esta antiquíssima. "Caudal hereditário" nada mais é que "acervo hereditário", "herança bruta". Relativamente ao testamento cerrado, a expressão "cerrar e coser" significa "fechar e costurar". Parece elegante e menos impactante fazer menção à morte como sendo "decesso", "defunção" ou "trespasse", para nos referirmos a algo absolutamente natural em nossas vidas, que é o falecimento. Do mesmo modo, a palavra "exerdação" soa chique, mas o sinônimo "deserdação" parece ser mais comumente compreensível e, a propósito, é uma pena civil nada louvável. Nos tabelionatos, vemos frequentemente a expressão assinar "em público e raso", que tem o sentido de assinar em presença de testemunhas e com assinatura por extenso. "Estípite" é o tronco de uma geração, ou seja, a origem de uma família ou raça. A despeito do nome, "herança danosa" não significa necessariamente algo ruim: o patrimônio hereditário transmissível abrange os cômodos e os incômodos, os créditos e os débitos deixados pelo "de cujus". "Herdeiro putativo" poderia ser mais facilmente referido como sendo "herdeiro aparente", e "heréu" nada mais é que herdeiro. "Irmãos colaços", também denominados "irmãos de leite", são os que foram amamentados pela mesma mulher, embora filhos de mães diferentes. Expressão muito vista no dia a dia da prática forense, "monte-mor" tem relação com a totalidade dos bens a serem inventariados ("mor" é forma sincopada de maior), contrapondo-se ao monte líquido, que é o valor dos bens, menos as dívidas atendidas. Já a posse que se adquire por força de lei, sem necessidade de apreensão material do bem possuído, leva o estranho nome de "posse civilíssima", embora possa ser chamada também de "posse artificial" e "posse ficta", mercê do princípio de saisine. E quem seria o "primo de todo mundo"? A resposta é simples: é o Fisco, pois o Estado, em caso de vacância, adquire a herança compulsoriamente como se fosse primo de qualquer defunto. Menção deve ser feita, ainda, à expressão "revogação nua" do testamento, para dizer que o ato revogatório pode ser imotivado. Por que utilizar a palavra "supérstite" se as palavras cônjuge e companheiro "sobrevivente" e "sobrevivo" são muito mais compreensíveis à população em geral? Outrossim, não seria mais prática a referência ao testamento "verbal" em vez de testamento "nuncupativo"?

A lista das nossas anotações seria enorme, mas para não alongar, lembramos que o usufruto "vidual", tem a ver com "viuvez" e não com vida.

Ficam aqui registradas as nossas sugestões para simplificação terminológica das palavras e expressões afetas ao Direito das Sucessões. Afinal, nesse complexo mundo de verborragia latente, o difícil é falar fácil!

Bibliografia:

PEREIRA, Tarlei Lemos. Direito Sucessório dos Conviventes na União Estável: uma abordagem crítica ao artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro. São Paulo: Letras Jurídicas. 2013.

ROSA, Eliasar. Dicionário Didático do Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 1994.

(Jus Navigandi)

04 fevereiro 2014

Como a obsessão por segurança muda a democracia

Giorgio Agamben


A segurança está entre aquelas palavras com sentidos tão abrangentes que nós nem prestamos mais muita atenção ao que ela significa. Erigido como prioridade política, esse apelo à manutenção da ordem muda constantemente seu pretexto (a subversão política, o terrorismo…), mas nunca seu propósito: governar as populações

A expressão “por razões de segurança” funciona como um argumento de autoridade que, cortando qualquer discussão pela raiz, permite impor perspectivas e medidas inaceitáveis sem ela. É preciso opor-lhe a análise de um conceito de aparência banal, mas que parece ter suplantado qualquer outra noção política: a segurança.
Poderíamos pensar que o objetivo das políticas de segurança seja simplesmente prevenir os perigos, os problemas ou mesmo as catástrofes. A genealogia remonta a origem do conceito ao provérbio romano “Salus publica suprema lex” – “A salvação do povo é a lei suprema” – e, assim, a inscreve no paradigma do estado de exceção. Pensemos nosenatus consultum ultimum e na ditadura em Roma;1 no princípio do direito canônico, segundo o qual “necessitas legem non habet” (“necessidade não tem lei”); nos Comitês de Salvação Pública2 durante a Revolução Francesa; ou ainda no artigo 48 da Constituição de Weimar (1919), fundamento jurídico do regime nacional socialista, que igualmente mencionava a “segurança pública”.
Embora correta, essa genealogia não permite compreender os dispositivos de segurança contemporâneos. Os procedimentos de exceção visam uma ameaça imediata e real, que deve ser eliminada ao se suspender por um período limitado as garantias da lei; as “razões de segurança” de que falamos hoje constituem, ao contrário, uma técnica de governo normal e permanente.
Mais do que no estado de exceção, Michel Foucault3 aconselha procurar a origem da segurança contemporânea no início da economia moderna, em François Quesnay (1694-1774) e nos fisiocratas.4 Se pouco depois do Tratado de Vestfália (1648)5 os grandes Estados absolutistas introduziram em seus discursos a ideia de que a soberania deveria velar pela segurança de seus súditos, foi preciso esperar Quesnay para que a seguridade – ou melhor, a “segurança” – se tornasse o conceito central da doutrina do governo.
Seu artigo consagrado aos “Grãos” na Enciclopédia permanece, dois séculos e meio depois, indispensável para compreender o modo de governo atual. Voltaire diz que, desde que esse texto surgiu, os parisienses pararam de discutir teatro e literatura para falar de economia e agricultura… Um dos principais problemas que os governos então precisavam enfrentar era o da escassez de alimento e a fome. Até Quesnay, eles tentavam preveni-los criando celeiros públicos e proibindo a exportação de grãos. Mas essas medidas preventivas tinham efeitos negativos sobre a produção. A ideia de Quesnay foi inverter o procedimento: em vez de tentar prevenir a fome, era preciso deixá-la acontecer e, pela liberação do comércio exterior e interior, governá-la quando ocorresse. “Governar” retoma aqui seu sentido etimológico: um bom piloto – aquele que detém o governo – não pode evitar a tempestade, mas, se ela ocorre, ele deve ser capaz de dirigir seu barco.
É nesse sentido que devemos compreender a expressão atribuída a Quesnay, mas que, na verdade, ele nunca escreveu: “Laisser faire, laisser passer”. Longe de ser apenas a divisa do liberalismo econômico, ela designa um paradigma de governo que situa a segurança – Quesnay evoca a “segurança dos agricultores e trabalhadores” – não na prevenção dos problemas e desastres, mas na capacidade de canalizá-los numa direção útil.
É preciso considerar a implicação filosófica dessa inversão que perturba a relação hierárquica tradicional entre as causas e os efeitos: pois é vão, ou de qualquer modo custoso, governar as causas, é mais útil e mais seguro governar os efeitos. A importância desse axioma não é negligenciável: ele rege nossas sociedades, da economia à ecologia, da política externa e militar às medidas internas de segurança e de polícia. É ele também que permite compreender a convergência antes misteriosa entre um liberalismo absoluto na economia e um controle de segurança sem precedentes.
Tomemos dois exemplos para ilustrar essa aparente contradição. Primeiro, o da água potável. Ainda que se saiba que esta vai logo faltar numa grande parte do planeta, nenhum país segue uma política séria para evitar seu desperdício. Ao contrário, vê-se se desenvolverem e se multiplicarem, nos quatro cantos do globo, as técnicas e usinas para o tratamento de águas poluídas – um mercado considerável no futuro.
Segundo exemplo. Consideremos no presente os dispositivos biométricos, que são um dos aspectos mais inquietantes das tecnologias de segurança atuais. A biometria surgiu na França na segunda metade do século XIX. O criminologista Alphonse Bertillon (1853-1914) se apoiaria na fotografia signalética e nas medidas antropométricas para constituir seu “retrato falado”, que utiliza um léxico padronizado para descrever os indivíduos numa ficha com seus sinais. Pouco depois, na Inglaterra, um primo de Charles Darwin e grande admirador de Bertillon, Francis Galton (1822-1911), desenvolveu a técnica das impressões digitais. Esses dispositivos, evidentemente, não permitem prevenir os crimes, mas perseguir criminosos reincidentes. Encontramos aqui ainda a concepção de segurança dos fisiocratas: é apenas com o crime cometido que o Estado pode intervir com eficácia.
Pensadas para os delinquentes recidivos e os estrangeiros, as técnicas antropométricas permaneceram por muito tempo privilégio exclusivo deles. Em 1943, o Congresso dos Estados Unidos recusou o Citizen Identification Act (Ato de Identificação do Cidadão), que visava dotar todos os cidadãos de carteiras de identidade com suas impressões digitais. Foi apenas na segunda metade do século XX que elas se generalizaram. Mas a última novidade aconteceu há pouco tempo. Os scanners ópticos, que permitem revelar rapidamente as impressões digitais e também a estrutura da íris, fizeram os dispositivos biométricos sair das delegacias de polícia para ancorar na vida cotidiana. Em certos países, a entrada nas cantinas escolares é controlada por um dispositivo de leitura óptica sobre o qual a criança pousa a mão distraidamente.

Leis mais severas que no fascismo
Preocupações se acumulam sobre os perigos de um controle absoluto e sem limites por parte de um poder que disporia de dados biométricos e genéticos de seus cidadãos. Com essas ferramentas, o extermínio dos judeus (ou qualquer outro genocídio imaginável), baseado numa documentação incomparavelmente mais eficaz, teria sido total e extremamente rápido. Em matéria de segurança, a legislação hoje em vigor nos países europeus é, em certos aspectos, sensivelmente mais severa do que a dos Estados fascistas do século XX. Na Itália, um texto único das leis sobre segurança pública (Testo Unico delle Leggi di Pubblica Sicurezza, Tulsp) adotado em 1926 pelo regime de Benito Mussolini está, no essencial, ainda em vigor; mas as leis contra o terrorismo votadas durante os “anos de chumbo” (de 1968 ao início dos anos 1980) restringiram sensivelmente as garantias nele contidas. Como a legislação francesa contra o terrorismo é ainda mais rigorosa que sua homóloga italiana, o resultado de uma comparação com a legislação fascista não seria muito diferente.
A crescente multiplicação de dispositivos de segurança testemunha uma mudança na conceituação política, a ponto de podermos legitimamente nos perguntar não apenas se as sociedades em que vivemos ainda podem ser qualificadas de democráticas, mas também e acima de tudo se elas ainda podem ser consideradas sociedades políticas.
No século V a.C., como demonstrou o historiador Christian Meier, uma transformação do modo de conceber a política já tinha se produzido na Grécia, por meio da politização (Politisierung)da cidadania. Uma vez que o pertencimento à cidade (a polis) era até então definido pelo estatuto e pela condição – nobres e membros das comunidades culturais, agricultores e comerciantes, senhores e clientes etc. –, o exercício da cidadania política se tornou um critério da identidade social. “Cria-se assim uma identidade política especificamente grega, na qual a ideia de que os indivíduos devem se conduzir como cidadãos encontra uma forma institucional”, escreve Meier. “O pertencimento a grupos constituídos com base nas comunidades econômicas ou religiosas foi relegado a segundo plano. À medida que os cidadãos de uma democracia se dedicavam à vida política, eles compreendiam a si mesmos como membros da polisPolis epoliteia, cidadee cidadania, se definem reciprocamente. A cidadania se torna assim uma atividade de uma forma de vida para aqueles para quem a polis, a cidade, constituía um domínio claramente distinto deoikos, a casa. A política se tornou um espaço público livre, oposto enquanto tal ao espaço privado onde reinava a necessidade.”6 Segundo Meier, esse processo de politização especificamente grego foi transmitido como herança à política ocidental, na qual a cidadania permaneceu – com altos e baixos, certamente – o fator decisivo.
É precisamente esse fator que hoje está se revertendo de modo progressivo: trata-se de um processo de despolitização. Antes limiar da politização ativa e irredutível, a cidadania se tornou uma condição puramente passiva, em que a ação ou a inação, o público e o privado se desvanecem e se confundem. O que se concretizava por uma atividade cotidiana e uma forma de vida se limita hoje a um estatuto jurídico e ao exercício de um direito de voto cada vez mais parecido com uma pesquisa de opinião.

“Todo cidadão é um terrorista potencial”
Os dispositivos de segurança têm desempenhado um papel decisivo nesse processo. A extensão progressiva a todos os cidadãos das técnicas de identificação outrora reservadas aos criminosos inevitavelmente afeta a identidade política. Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não é mais função da “pessoa” social e de seu reconhecimento, do “nome” e da “nominação”, mas de dados biológicos que não podem manter nenhuma relação com o sujeito, como os rabiscos sem sentido que meu polegar molhado de tinta deixou sobre a folha de papel ou a inscrição de seus genes na dupla hélice do DNA. O fato mais neutro e mais privado se torna assim o veículo de identidade social, removendo seu caráter público.
Se critérios biológicos, que em nada dependem da minha vontade, determinam minha identidade, então a construção de uma identidade política se torna problemática. Que tipo de relação eu posso estabelecer com minhas impressões digitais ou com meu código genético? O espaço da ética e da política que estamos acostumados a conceber perde seu sentido e exige ser repensado a partir do zero. Enquanto a cidadania grega se definia pela oposição entre o privado e o público, a casa (sede da vida reprodutiva) e a cidade (lugar do político), a cidadania moderna parece evoluir numa zona de indiferenciação entre o público e o privado, ou, para tomar emprestadas as palavras de Thomas Hobbes, entre o corpo físico e o corpo político.
Essa indiferenciação se materializa na videovigilância das ruas em nossas cidades. Tal dispositivo conheceu o mesmo destino que o das impressões digitais: concebido para prisões, ele tem sido progressivamente estendido para os lugares públicos. Um espaço videovigiado não é mais uma ágora, não tem mais nenhuma característica pública; é uma zona cinzenta entre o público e o privado, a prisão e o fórum. Tal transformação tem uma multiplicidade de causas, entre as quais o desvio do poder moderno em relação à biopolítica ocupa lugar especial: trata-se de governar a vida biológica dos indivíduos (saúde, fecundidade, sexualidade etc.), e não mais apenas exercer uma soberania sobre o território. Esse deslocamento da noção de vida biológica para o centro da vida política explica o primado da identidade física sobre a identidade política.
Mas não podemos esquecer que o alinhamento da identidade social com a corporal começou com a preocupação de identificar os criminosos recidivos e os indivíduos perigosos. Portanto, não é surpreendente que os cidadãos, tratados como criminosos, acabem por aceitar como evidente que a relação normal entre o Estado e eles seja a suspeita, o fichamento e o controle. O axioma tácito, que é preciso aqui arriscar a anunciar é: “Todo cidadão – enquanto ser vivente – é um terrorista potencial”. Mas o que é um Estado, o que é uma sociedade regida por tal axioma? Podem ainda ser definidos como democráticos ou mesmo como políticos?
Em seus cursos no Collège de France e também em seu livro Vigiar e punir,7 Foucault esboça uma classificação tipológica dos Estados modernos. O filósofo mostra como o Estado do Antigo Regime, definido como um Estado territorial ou de soberania, cuja divisa era “fazer morrer e deixar viver”, evoluiu progressivamente para um Estado de população em que a população demográfica substitui o povo político e para um Estado de disciplina, cuja divisa se inverte em “fazer viver e deixar morrer”: um Estado que se ocupa da vida dos sujeitos para produzir corpos sãos, dóceis e disciplinados.
O Estado em que vivemos hoje na Europa não é um Estado de disciplina, mas – segundo a expressão de Gilles Deleuze – um “Estado de controle”: ele não tem por objetivo ordenar e disciplinar, mas gerir e controlar. Depois da violenta repressão das manifestações contra o G8 de Gênova, em julho de 2001, um funcionário da polícia italiana declarou que o governo não queria que a polícia mantivesse a ordem, mas gerasse a desordem. Por sua vez, os intelectuais norte-americanos que tentaram refletir sobre as mudanças constitucionais induzidas pelo Patriot Act (Lei Patriótica) e a legislação pós-11 de Setembro8 preferem falar de “Estado de segurança” (security State). Mas o que quer dizer “segurança” aqui?
Durante a Revolução Francesa, essa noção estava implicada com aquela de polícia. A lei de 16 de março de 1791 e depois a de 11 de agosto de 1792 introduziram na legislação francesa a ideia, que teria uma longa história na modernidade, de “polícia de segurança”. Nos debates precedentes à adoção dessas leis, parecia claro que polícia e segurança se definiam reciprocamente; mas os oradores – entre os quais Armand Gensonné, Marie-Jean Hérault de Séchelles, Jacques Pierre Brissot – não foram capazes de definir nem uma coisa nem outra. As discussões se mantiveram essencialmente nas relações entre a polícia e a justiça. Segundo Gensonné, trata-se de “dois poderes perfeitamente distintos e separados”; e, portanto, enquanto o papel do Poder Judiciário é nítido, o da polícia parece impossível de definir.
A análise do discurso dos deputados mostra que o lugar da polícia é impossível de ser decidido, e deve continuar assim, pois se estivesse inteiramente absorvida pela justiça a polícia não poderia mais existir. É a famosa “margem de apreciação” que ainda hoje caracteriza a atividade do agente de polícia: em relação à situação concreta que ameaça a segurança pública, ele age com soberania. Fazendo assim, não decide nem prepara – como se diz erroneamente – a decisão do juiz: toda decisão implica causas e a polícia intervém sobre os efeitos, isto é, sobre algo que não pode ser decidido.
Esse não decidido não se chama mais, como no século XVII, de “razão de Estado”, mas de “razões de segurança”. O security State é, portanto, um Estado de polícia, mesmo que a definição de polícia constitua um buraco negro na doutrina do direito público: quando no século XVIII surgiu na França o Traité de la police, de Nicolas de La Mare, e na Alemanha a Gesamte Policey-Wissenschaft, de Johann Heinrich Gottlob von Justi, a polícia foi reduzida à sua etimologia de politeia e tende a designar a política verdadeira, indicando o termo “política” nessa época apenas a política externa. Von Justi nomeia assim Politik a relação de um Estado com os outros e Polizei a relação de um Estado consigo mesmo: “A polícia é a relação de força de um Estado consigo mesmo”.
Ao se colocar sob o signo da segurança, o Estado moderno deixa o domínio da política para entrar numa no man’s land em que mal se percebem a geografia e as fronteiras e para a qual nos falta conceituação. Esse Estado, cujo nome remete etimologicamente a uma ausência de preocupação (securus: sine cura), nos deixa ainda mais preocupados com os perigos a que ele expõe a democracia, já que a via política se tornou impossível; pois democracia e vida política são – ao menos em nossa tradição – sinônimos.
Diante de tal Estado, é preciso repensar as estratégias tradicionais de conflito político. No paradigma securitário, todo conflito e toda tentativa mais ou menos violenta de reverter o poder oferecem ao Estado a oportunidade de administrar os efeitos em interesse próprio. É isso que mostra a dialética que associa diretamente terrorismo e reação do Estado numa espiral viciosa. A tradição política da modernidade pensou nas transformações políticas radicais sob a forma de uma revolução que age como o poder constituinte de uma nova ordem constituída. É preciso abandonar esse modelo para pensar mais numa potência puramente destituinte, que não fosse captada pelo dispositivo de segurança e precipitada na espiral viciosa da violência. Se quisermos interromper o desvio antidemocrático do Estado securitário, o problema das formas e dos meios de tal potência destituinte constitui a questão política essencial que nos fará pensar durante os próximos anos.

Giorgio Agamben é um filósofo italiano. Texto originalmente publicado no Le Monde Diplomatique.

 Notas:
1  Em casos graves, a República romana previa a possibilidade de confiar, de modo excepcional, plenos poderes a um magistrado (o ditador).
2  Comitês que deviam proteger a República contra os perigos de invasão e da guerra civil.
3  Michel Foucault, Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France (1977-1978)[Segurança, território e população. Curso no Collège de France (1977-1978)], Gallimard/Seuil, Paris, 2004.
4  A fisiografia baseia o desenvolvimento econômico na agricultura e defende a liberdade do comércio e da indústria.
5  O Tratado de Vestfália encerrou a Guerra dos Trinta Anos opondo o campo dos Habsburgos, apoiados pela Igreja Católica, e os Estados alemães protestantes do Sacro Império. Ele inaugura uma ordem europeia fundada nos Estados-nação.
6  Christian Meier, “Der Wandel der politisch-sozialen Begriffswelt im V Jahrhundert v.Chr.”. In: Reinhart Koselleck (org.), Historische Semantik und Begriffsgeschichte, Klett-Cotta, Stuttgart, 1979.
7  Michel Foucault, Surveiller et punir [Vigiar e punir], Gallimard, Paris, 1975.
8 Ler Chase Madar, “Recrudescimento do aparato de segurança norte-americano”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2012.

Fonte:http://norbertobobbio.wordpress.com/2014/02/03/como-a-obsessao-por-seguranca-muda-a-democracia/

Linguagem Jurídica e Redação Forense

Texto de Wallace Magri ( http://wallacemagri.jusbrasil.com.br/)

"Esta autoridade judiciária tem mais de quarenta mil processos em tramitação nesta unidade jurisdicional, de maneira que, em prol da racionalização do serviço para uma maior eficiência do Poder Judiciário Catarinense, se vê obrigado a exigir maior concisão, clareza e objetividade nas peças processuais que tem dever de apreciar, por força do próprio cargo e do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. da CF). Características essas – concisão, clareza e objetividade – que, inclusive, devem nortear todos os produtos jurídicos, mais ainda aqueles que são apresentados na praça de elegância do processo judicial". (Ação: consignação em pagamento. Proc. Nº 033.04.027273-0)
O texto acima é trecho de sentença judicial em que o Magistrado demonstra sua insatisfação com petição inicial produzida por advogado que não leva em consideração qualquer tipo de técnica redacional em busca do adequado desenvolvimento e demonstração de raciocínio lógico-jurídico em sua atividade profissional.

Como se sabe, as demandas judiciais são processos por meios dos quais um conjunto de raciocínios dialeticamente concatenados e tornados textos, que obedecem a determinado procedimento, permitem ao juiz concluir sobre a aplicação do direito ao caso concreto colocado sob sua jurisdição.

É espantoso como, em que pese todo o rigor do examinador do Exame de Ordem, a atividade judiciária conviva com um sem-número de peças processuais ‘sem pé nem cabeça’, que primam pela falta de concisão, objetividade e clareza – termos que destacamos da decisão judicial em epígrafe.

A linguística – ciência da linguagem – é ramo do conhecimento que busca descrever os fenômenos linguísticos e teorizar sobre como é possível a linguagem verbal humana. Já a Gramática Normativa compreende o estudo do conjunto de regras que devem ser obedecidas para a produção de enunciados conforme o padrão culto de determinada língua natural. Por meio dessas duas áreas do saber, é possível compreender como se dá a formação da linguagem jurídica e da redação forense, o que nos propomos a desenvolver neste artigo.

Em primeiro lugar, é preciso compreender que a linguagem jurídica é considerada linguagem de segundo grau, isto porque, embora se desenvolva por meio de determinada língua natural (português, inglês, francês, etc.), possui termos que são específicos do Direito, considerado por muitos uma ciência autônoma.

Sendo assim, o estudante e o profissional da área jurídica devem compreender a significação específica dos termos jurídicos, eis que são unívocos, ou seja, possuem significados específicos, de modo que um não pode ser utilizado pelo outro, como fazemos normalmente com palavras sinônimas.

Vale dizer, /roubo/ não é sinônimo de /extorsão/ e é juridicamente incorreto utilizar um termo pelo outro, eis que as consequências jurídicas são distintas. É à Semiologia que cabe teorizar a respeito dos signos linguísticos (unidades discretas de sentido) e suas relações de significação por meio de uma verdadeira rede em que um termo se relaciona com os demais termos da rede de relações semânticas, produzindo, assim, a linguagem jurídica.

Uma vez compreendida a relação semântica estabelecida entre os termos jurídicos, deve-se considerar que não pertence à linguagem jurídica a utilização de arcaísmos, expressões latinas e palavras rebuscadas em geral, que, sempre que possível, devem ser evitadas, em benefício da maior clareza do texto desenvolvido para fins forenses.

A utilização de tais termos é herança da Retórica Clássica, difundida nos meandros jurídicos pátrios no século XX e que perdeu espaço atualmente, em virtude do próprio empobrecimento semântico dos atuais operadores do direito que leem pouco e, por isso, possuem restrito repertório lexical. Assim, em nome da clareza, devem utilizar as palavras com as quais estão mais acostumados e de cujo significado têm conhecimento, desde que sigam o padrão da norma culta.

Além da noção de língua como sistema, a linguística também oferece mecanismos para compreender a linguagem enquanto processo de produção de enunciados – missão que cabe à Pragmática, ou Teoria dos Atos da Fala, essencial para a adequada produção de enunciados.

Aplicando a pragmática à Redação Forense, temos que esta deve ser desenvolvida de maneira lógica, por meio de parágrafos dissertativos, com a finalidade de convencer o magistrado sobre a correção do raciocínio desenvolvido, haja vista que esta é a intenção comunicacional neste caso.

Infelizmente, o que geralmente ocorre em peças jurídicas redigidas de maneira inadequada é que são verdadeiros ‘Franksteins’, graças ao advento do que poderíamos chamar de ‘Dr. Google’, ou seja, grande parte dos profissionais da área jurídica valem-se de referido mecanismo de pesquisa eletrônica para buscar ‘modelos’ para a peça jurídica que precisam redigir. Como a autoria dessas peças é de origem duvidosa e obviamente genérica, o ‘Dr. Google’ – que não desenvolveu aquele raciocínio e nem se deu ao trabalho de compreendê-lo – simplesmente insere trechos do caso em concreto em um modelo previamente elaborado, criando efeito de sentido de discurso difuso e excessivamente polifônico. Resultado: o texto perde fica sem concisão.

Observe que a concisão textual é informada pelos mecanismos de coerência e coesão textual. Enquanto a coerência textual permite ao leitor do texto compreender a sequência lógica do raciocínio jurídico em nível semântico, a coesão opera na sintaxe, construindo o caminho textual adequado para que as ideias possam fluir de modo harmônico e colaborativo.

Para que o enunciador da redação forense seja capaz de elaborar texto conciso, deve ter domínio das estruturas sintáticas do período simples e do período composto, sabendo se valer de preposições e conjunções a fim de fazer a ligação, respectivamente, dos termos dentro de uma oração e das orações entre si.

Ou seja, sem conhecimento gramatical, as ideias se perdem pelos caminhos mal traçados pela pobre noção de sintaxe, o que simplesmente aniquila a regência verbal, o acento indicativo da crase e a pontuação correta, confundindo ao invés de informar o leitor do texto e, com isso, fracassando em sua intenção comunicacional de persuasão do magistrado.

Correlata à noção de concisão está a de objetividade, o que nos remete a mais um tema de Pragmática, denominado ‘máximas conversacionais’, que nos ensina que, para que o texto cumpra adequadamente sua função comunicacional deve obedecer às seguintes máximas:

Máximas da quantidade
- que sua contribuição contenha o tanto de informação exigida.
- que sua contribuição não contenha mais informações do que é exigido.

Máximas da qualidade (verdade)
- que sua contribuição seja verídica.
- não afirme o que você pensa que é falso.
- não afirme coisa de que não tem provas.

Máxima da relação (da pertinência)
- fale o que é concernente ao assunto tratado (seja pertinente).

É uma pena que tais temas sejam frequentemente negligenciados nas Faculdades de Direito, que conferem espaço exíguo para a cadeira de Redação e Linguagem Jurídica, esquecendo-se de que é por meio da linguagem que o Direito se aperfeiçoa enquanto práxis. Certamente, a falta de conhecimento científico da linguagem pelos profissionais do direito está entre os fatores que impedem a melhoria das ciências jurídicas.

E, enquanto o ensino jurídico negligenciar esta tarefa, conviveremos diariamente com situações tais como a que frustrou o magistrado cujo texto é mencionado no início deste breve ensaio e, assim, muita tinta de impressora, folha A4, ‘bytes’ e ‘downloads’ serão gastos com a necessidade de emendas de petições iniciais e de embargos de declaração – remédio jurídico quando é ao juiz que falta clareza, concisão e objetividade, o que também é muito comum na redação forense.
                                                          
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O Autor é advogado e consultor jurídico; Sócio do escritório Lavítola, Siqueira e Reina sociedade de advogados; Doutor e Mestre em semiótica e linguística geral pela USP; Professor de graduação e pós-graduação de várias instituições.

Fonte: http://wallacemagri.jusbrasil.com.br/artigos/112510797/linguagem-juridica-e-redacao-forense?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter