Para
não repetir, pela enésima vez, dados sobre a violência doméstica no
país, vale ressaltar apenas uma notícia recente: a Lei n. 11.340/2006
(conhecida por Lei Maria da Penha) não fez qualquer diferença na
dimensão do problema do chamado feminicídio (mulheres assassinadas por
seus parceiros), o ápice a que se pode chegar em termos de violência no
âmbito familiar.
Dados consolidados em 2012 por
pesquisadores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) denotam
que, depois de uma pequena baixa, logo em seguida à promulgação da lei,
os números voltaram a seu “patamar normal”. No Brasil, no período de
2001 a 2011, estima-se que ocorreram mais de 50 mil feminicídios – o
equivalente a 5.000 mortes por ano, aproximadamente, como indicam os
quadros abaixo:
Espírito Santo e Piauí, quem diria... |
Os resultados da pesquisa demonstraram
ainda que, especificamente no período de 2009 a 2011, foram estimadas,
em média, 5.664 mortes a cada ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou
uma a cada hora e meia.
As regiões Nordeste, Centro-Oeste e
Norte apresentaram os índices de feminicídios mais elevados. O Estado do
Espírito Santo contabilizou a taxa mais alta e o Estado do Piauí a mais
baixa (11,24 e 2,71, respectivamente). Quanto à idade, as mulheres
jovens foram as principais vítimas: 31% estavam na faixa etária de 20 a
29 anos e 23% de 30 a 39 anos. A maior parte tinha baixa escolaridade:
48% das vítimas com 15 ou mais anos de idade tinham até oito anos de
estudo.
Metade dos homicídios ocorreu por uso de
armas de fogo e 34% por uso de instrumento perfurante, cortante ou
contundente. Enforcamento ou sufocação foi registrado em 6% dos
feminicídios. Maus tratos – incluindo agressão por meio de força
corporal, força física, violência sexual, negligência, abandono e
síndromes semelhantes (abuso sexual, crueldade mental e tortura) – foram
registrados em 3% dos óbitos. Cerca de 60% dos óbitos foram de mulheres
negras, as principais vítimas em todas as regiões, exceto a Região Sul,
merecendo destaque a elevada proporção de óbitos de mulheres negras no
Nordeste (87%) e Norte (83%) do país.
Cerca de 30% dos assassinatos ocorreram
no domicílio da vítima, 31% em via pública e 25% em hospital ou
estabelecimento semelhante; no que tange ao momento do crime, 36%
ocorreram aos finais de semana, tendo os domingos concentrado 19% das
mortes. Ressaltou-se, nas considerações finais da pesquisa, que o estudo
realizado se concentrou tão somente nos óbitos e que até mesmo a
obtenção de informações acuradas sobre dados neste campo constitui
grande dificuldade, e não somente no Brasil.1
Embora a dimensão apontada, por si só,
seja assustadora, bem se sabe que a violência doméstica compreende
amplíssima gama de atos, desde a simples agressão verbal a formas
elaboradas de abuso emocional, desde a violência física ou sexual até a
morte intencional da mulher. Os feminicídios foram então comparados à
“ponta do iceberg”, cujo “lado submerso” esconde o universo de
violências não declaradas, da violência rotineira e quotidiana contra as
mulheres no espaço doméstico.
Pierre Bourdieu é um dos autores que
ressaltam que “a unidade doméstica é um dos lugares em que a dominação
masculina se manifesta de maneira mais indiscutível” e “não só através
do recurso à violência física”; por outro lado, Bourdieu acredita que o
princípio de perpetuação das relações de força materiais e simbólicas
que ali se exercem está “essencialmente fora daquela unidade, em
instâncias como a Igreja, a Escola ou o Estado”.2
Muito foi feito: a conquista formal da
igualdade de direitos, tanto na sociedade como na família, a lei que
conduz a uma proteção especial em favor das mulheres, as delegacias da
mulher, a garantia de quotas políticas etc., se foram aquisições na
órbita indicada, por outro lado ainda surtem efeito mínimo no que se
refere a alterar a inferiorização feminina na esfera doméstica.
Só aqui, hoje, parece realmente útil
agir para que a dominação masculina feneça. Através de movimentos
sociais, políticos, feministas ou não, assistencialistas ou não,
reuniões de pais de alunos, clubes, grupos de discussão, entre outros,
que sistematicamente denunciem e impeçam a “cumplicidade” objetiva da
ordem masculina.3 Nos Estados Unidos, por exemplo, a violência doméstica caiu 64% nos últimos dez anos.4
Os três primeiros passos dados lá foram como os nossos: primeiro, a
criação de organizações de proteção das mulheres; depois, a mudança das
leis, seguida do aumento da visibilidade da injustiça através da
publicidade e da propaganda. Mas o quarto passo, que ainda não
experimentamos, talvez esteja fazendo toda a diferença.
Uso as palavras de Esta Soler, uma das
maiores especialistas no combate à violência doméstica e fundadora da
instituição Futures Without Violence: “(…) nós estávamos esquecendo um
elemento crítico. Então, quarto passo: nós precisávamos engajar os
homens. Não poderíamos resolver este problema com 50 por cento da
população fora de campo. (…) Uma pesquisa nacional nos disse que os
homens se sentiam indiciados, e não convidados, a esta conversa. Então
nós nos perguntamos, como podemos incluir os homens? Como podemos fazer
com que os homens conversem sobre violência contra mulheres e meninas? E
um amigo meu me puxou e disse, ‘Você quer que homens conversem sobre
violência contra mulheres e meninas. Homens não conversam’. Mas, disse
ele, ‘Você sabe o que eles fazem? Eles conversam com seus filhos. Eles
conversam com os filhos como pais, como treinadores’”.5
Cada povo tem a sua cultura e a sua maneira de agir. Precisamos encontrar a nossa maneira de envolver os homens nesta luta.6
Maria Celina Bodin de Moraes————
1L. P. GARCIA et alii. Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf, acesso em 15 fev. 2014.
2P. BOURDIEU. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 138.
3P. BOURDIEU. Op. cit., p. 139. O A. se refere a ambos os sexos.
4V. a nota seguinte.
5No original: “(…) we were still missing a
critical element. So, step four: We needed to engage men. We couldn’t
solve this problem with 50 percent of the population on the sidelines.
(…) National polling told us that men felt indicted and not invited into
this conversation. So we wondered, how can we include men? How can we
get men to talk about violence against women and girls? And a male
friend of mine pulled me aside and he said, ‘You want men to talk about
violence against women and girls. Men don’t talk’. (…) But he said, ‘Do you know what they do do? They do talk to their kids. They talk to their kids as parents, as coaches’“. A palestra de Esta Soler, intitulada “Como virar o jogo da violência doméstica”, está na seção de vídeos deste número da civilistica.com.
6Indico aqui algumas instituições que precisam
de voluntários, doações, ou simplesmente se dedicam à causa: i)
Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (www.asbrad.com.br); ii) Centro de Referência das Mulheres da Maré (www.nepp-dh.ufrj.br/crmm/index.html); iii) ONU MULHER (www.unwomen.org/es), esta última recém lançada.
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